A definição da especificidade do texto literário pode partir dos seguintes princípios orientadores: (1) Tradicionalmente, o texto literário distingue-se do texto das ciências da história, da filosofia, da psicologia, sociologia, etc. Contudo, caracteriza-o um campo de acção criativa tal que pode ir buscar a todos os outros campos os termos que hão-de ajudar a construir a sua especificidade. (2) O texto literário é ao mesmo tempo igual a todos os outros (em termos de forma e estrutura) e diferente de todos (pela linguagem); é ao mesmo tempo igual a todos os outros (em termos de uso de uma linguagem) e diferente de todos (pela procura de uma forma e estrutura peculiares); é ao mesmo tempo igual a todos os outros (em termos de forma e estrutura e uso da linguagem) e diferente de todos (em termos de forma e estrutura e uso da linguagem). Vale este princípio complexo como o princípio dos paradoxos da definição referencial de literatura, que anula qualquer tentativa de institucionalização da literariedade como explicação do fenómeno literário. (3) O texto literário não é um registo linguístico efémero, pois tem por objectivo ser preservado na tradição oral e/ou escrita. Neste sentido, é intemporal. (4) Em relação ao leitor, por exemplo, a especificidade do texto literário pode dizer respeito ao efeito catártico que conduz à crença de que a literatura pode purificar e reeducar a sociedade (assim acreditaram os neo-realistas). (5) Em relação aos autores, tal especificidade, pode traduzir-se no facto de o texto literário poder ser expressivo (propriedade não formal, mas referente aos registos directos das experiências pessoais e do carácter do escritor) ou impessoal (criações que ofuscam a individualidade do escritor). No primeiro caso, estariam autores como Eça de Queirós ou Almeida Garrett; no segundo, os escritores surrealistas ou os concretistas, por exemplo. (6) O facto literário de um texto pode explicar-se como forma de persuasão (na tradição retórica, mas não na tradição da psicogagia sofística) simplesmente para apresentar um ponto de vista (Antero proudhoniano) ou para tentar mudar o mundo (o caso dos poetas futuristas, por exemplo).
Jonathan Culler inicia e termina o seu artigo sobre “A literariedade” com as seguintes confissões, respectivamente: “Devemos confessar que não chegámos a uma definição satisfatória da literariedade.” e “Não encontrámos nenhum critério distintivo e suficiente susceptível de a definir.” (Teoria Literária, dir. de Marc Angenot et al., Dom Quioxte, Lisboa, 1995, p.45 e p.58). A literaturnost — termo original russo para a tradução portuguesa de literariedade, isto é, o que faz de um dado texto um texto literário — implica que os usos especiais de linguagem que fazem o literário se encontram não só nos textos literários mas também fora deles. Então, se a literatura pode ser definida nestes termos, podemos argumentar que o discurso oral quotidiano contém maior dose de metaforização do que muitos textos declarados “literários”. O jornal A Bola tem, pois, mais marcas de literaturnost do que muitos romances que hoje se publicam sob esta designação. As convenções e exigências cientificistas da literariedade levam normalmente o professor de literatura a este tipo de simplificações infundamentadas, reduzindo o ensino da textualidade a meras prescrições formalizadas. Ninguém obsta a que é perfeitamente possível investigar hoje o que origina o literário do texto - para isso existe a hermenêutica contemporânea, a desconstrução, a estética da recepção, a semiótica pós-estruturalista, a crítica foucaultiana, derridiana, etc. Mas já é muito discutível que devamos ainda depender de tal conceito para determinar a especificidade do texto literário.
O estudo dialéctico da literariedade - literário versus não literário - não está isento de ambiguidade. Qualquer texto futurista, surrealista ou de poesia experimental ou de poesia visual ou de poesia fonética desafiará as nossas convicções sobre o que é um texto literário e o que é um texto não literário. Proponho o seguinte critério (não único, não definitivo) para decidir, didacticamente pelo menos, sobre tal classificação tipológica. Perante um texto literário, qualquer que seja a sua natureza, um leitor informado argumentar, em princípio, que tal construção textual é um texto literário, cuja literariedade está associada à combinação intencional entre um signo gráfico e signos linguísticos com o objectivo de produzir uma relação significativa simbólica. A explicitação de tal relação significativa variará naturalmente de leitor para leitor. No caso de um poema visual, por exemplo, tenderemos a procurar uma significação literária para uma construção aparentemente não literária, pelo que dificilmente poderemos defender a pretensa literariedade com argumentos lógicos para todos os leitores, o que nos leva a concluir que o que faz a literariedade de um texto é em primeiro lugar o reconhecimento geral dessa propriedade por toda uma comunidade interpretativa. Contudo, mesmo esta regra que parece satisfatória está sujeita a excepções incómodas. Seja o exemplo, entre muitos outros, do poema “Ode marítima” de Álvaro de Campos. Quando foi publicado pela primeira vez no Orpheu 2 (1915), produziu escândalo na comunidade interpretativa da época, não sendo reconhecido como texto literário mas como pura “pornografia”, “alienação”, “literatura de manicómio” e outros epítetos do género. Todas as obras artísticas de vanguarda respeitam de alguma forma a exigência de provocação, que quase invariavelmente redunda em anátema. Isto significa que o princípio de aceitação universal da literariedade de um texto está sujeito ao livre-arbítrio.
Quando um texto nos apresenta sinais, sugestões ou elementos que revelem o gozo (no sentido da lacaniana jouissance ) que o seu autor experimentou ao criá-lo, podemos introduzir um outro critério — ainda discutível — para a definição da literariedade de um texto e assim distingui-lo de um texto não literário. A criação de um texto literário é a mais erótica de todas as criações textuais. Mas será que um texto não literário não pode arrastar consigo sinais de gozo de quem o criou? Roland Barthes admitiu em “Theory of the Text” (artigo inicialmente publicado em Encyclopaedia Universalis, 1973), que qualquer texto “textual” conduz pela sua essência criativa à jouissance do autor, seja literário ou não, isto é, conduz necessariamente não só a um prazer de escrita como a própria escrita ou texto produzido é uma espécie de clímax sexual - um têxtase. Se reduzíssemos este princípio de textualidade e decidíssemos que qualquer tentativa de levar o erotismo criativo da escrita para além de certos limites significa entrar de imediato no limiar do literário, então teremos encontrado um critério de definição da literariedade. Do texto que seja resultado de um têxtase, diremos ser literário.
O princípio do têxtase textual está naturalmente sujeito ao livre-arbítrio do leitor. Mas a teoria literária distingue-se das ciências exactas precisamente porque é intrinsicamente inexacta, dispensando o enunciado de leis universais de resolução de problemas. Em teoria literária, não é possível dizer: “Tenho a solução para este problema.” Todas as soluções definitivas são absolutamente discutíveis, portanto, não há soluções definitivas, tal como não há leitores peritos. Todo o texto literário, enquanto cemitério de sentidos mortos-vivos, é uma ameaça constante para o leitor que se julgue perito nesse texto. A filosofia chama à ciência o processo pelo qual o homem se relaciona com a natureza visando à dominação dela em seu próprio benefício. Tal processo configura-se na determinação segundo um método e na expressão em linguagem matemática de leis em que se podem ordenar os fenómenos naturais, do que resulta a possibilidade de, com rigor, classificá-los e controlá-los. Ora, tal é simplesmente impossível em teoria literária, porque qualquer texto pode resistir à tentativa de controlar a sua organização interna. Simplesmente não é possível determinar uma taxonomia textual, porque não é possível sistematizar processos de resolução hermenêutica. Tais processos não existem sequer. Nem mesmo o princípio de têxtase pode ser sistematizado, em face da sua sujeição ao livre-arbítrio do leitor. O têxtase não se diz - escritura-se. Necessitamos pelo menos de um novo critério de reconhecimento do facto de literariedade de um dado texto. Tal critério pode ser definido a partir da intenção criacionista, não confundível com “intenção autoral”, que diz respeito à hermenêutica do texto. A intenção criacionista diz respeito somente à produção do texto, à intenção contingente ao momento de criação literária. Corresponde ao acto volitivo-performativo de complexa natureza traduzido na expressão: “Eu, autor, quero fazer um texto literário.”. A textualidade literária de um texto começa por se perceber na intenção criacionista ou produtora desse texto. Em qualquer caso, estamos num domínio teórico de difícil didáctica.
Fonte:http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/T/texto_literario_texto_nao_lit.htm
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